Danae

Danae
Klimt, Gustav

sábado, março 15, 2008

Ela decidiu que, por enquanto, nunca mais vai gostar de alguém!

"Era como uma ausência quase que completa de sensações. Era enfim a inércia sensorial que tanto desejou. Mas porque então, nem mesmo assim, sentia-se bem? Será que nada seria capaz de lhe devolver a tranqüilidade?... Julgando saber o que fosse tranqüilidade.
Tentava não sentir tanta falta dos amigos e das pessoas que outrora desejava com doentia necessidade. Não que as tivesse esquecido ou não sentisse mais falta, só tentava não se importar. A precisão daquelas companhias a fazia possuidora de uma dor e uma profunda solidão por acreditar que seus minutos consigo mesma não importavam para ninguém, nem para si.
Por alguns dias conseguiu não ligar pra nada. Não ter as velhas necessidades, não esperar os contatos e telefonemas, passar as tardes sozinha e tudo isso quase sem chorar. No entanto seu processo de embrutecimento não estava concluído e já começava a notar algumas falhas de planejamento estrutural para executá-lo totalmente. A poesia (se é que havia mesmo existido) secara-lhe. As palavras sumiam antes de calarem-se por dentro. Sequer a cutucavam, empurrando-a para fora da cama de madrugada, como outrora. A madrugada! Seria pelo fato de agora estar tão exausta já no meio de seus dias que mal conseguia esperar pelo contato do corpo estendido e tenso no velho colchão de molas? Definitivamente faltava-lhe aquele ócio produtivo de que tanto falavam os mestres de literatura. O ócio do qual ela estava a fugir. Fugir de pensar para não sentir, não sentir para não pensar e com tudo isso não acontecendo ela também não escrevia mais.
Esse era o plano perfeito para não sofrer. Não sentir, não pensar, não escrever, não criar mais laços e não precisar mais de ninguém. Claramente que existia uma falha de execução nisso tudo. A menos que se isolasse por completo e isso não era ao menos provável, quanto mais possível de ser realizado no momento.
Estava habituada a gostar muito de algumas pessoas por algum tempo e depois esquecê-las, não se importando mais. Sempre fora assim e isso há tempos já havia deixado de incomodar. Não lutava mais contra a maneira com a qual os sentimentos se davam dentro dela. Acontece que também adquirira o terrível habito de se pensar. Se definir, ao menos um pouco, para poder ter uma breve noção não de quem era, mas de quem estava a ser naquele instante da definição. Ajudava um pouco a não se surpreender tanto com os julgamentos alheios, sempre tão diversos dos que se fazia. No fundo sempre soube que não suportava ver ninguém partir e sendo assim, algo dentro dela se despedia dos afetos antes que eles virassem-lhe as costas, algumas vezes sem sequer dizerem adeus. Foram tantas partidas, tantas saudades, tanta dor a lhe cortar a alma em tão finas postas que sentia que não podia mais. Via-se no limite, embora a realidade lhe desanimasse quanto a permanecer só, sabia que já não se tratava de mera escolha.
Tudo havia se agravado com um lampejo de lucidez que a fez deixar de crer nos mitos da infância. Descobriu só depois dos 25 que os romances eram coisa do cinema e dos livros. Foram muitas revelações em tão pouco tempo e sua sensibilidade protuberante não deixava nenhuma reação por menos. Não cria mais em muitas palavras. Percebia uma intenção oculta e controladora por trás de toda e qualquer definição de sentimento. Olhava para as pessoas a sua volta e notava claramente que ninguém partilhava dessas ‘revelações’. Todos ainda crédulos e felizes (ou não) e se não ao menos com a esperança dada pelas ilusões (essas sim compartilhadas). Se dissesse a eles porque tantos enlouqueceram e deram cabo de sua existência seria certamente chamada de louca e depressiva... Nenhuma originalidade nas alcunhas a ela dirigidas. Ria-se ao ver os outros julgando eternos seus instantes, mas após algum tempo já não havia graça. Nunca houve graça. Isso também era ilusão. Algo sempre a tocava por mais que se esquivasse. E as lágrimas derretiam sua convicção inabalável de não ter convicções e de não se deixar abalar. Nada mais a surpreendia. Nem as saudades, nem as paixões, nem as surpresas, nem os nadas da vida."

Carolina Miquelassi
02:08_15.03

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